Número 510 - Ano 21

Salvador, quarta-feira, 7 de junho de 2023

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«Sou poesia. Não sei me traduzir...» (Dante Milano) *

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Ieda E. de Abreu
Ieda E. de Abreu



Amigas e amigos,

A poeta cearense Ieda E. de Abreu — ou, por extenso, Ieda Estergilda de Abreu —, já esteve aqui nesta página em junho de 2003, na edição n. 23, quando o poesia.net ainda não havia completado um ano de circulação. Agora, ela retorna, trazida pelo lançamento da 2ª edição de sua coletânea Grãos - Poemas de Lembrar a Infância. Publicado originalmente em 1985 pela histórica editora de Massao Ohno, o livro ganha agora nova edição, a cargo da editora Urutau, sediada em Cotia-SP.

Grãos apresenta um roteiro de alguma forma associado à vida pessoal da autora. Divide-se em quatro seções: “Abertura”, “Crescer”, “Acalantos” e “Memória”. Na primeira, a voz poética pertence a uma mãe, que aguarda o nascimento do filho. No poema “[No papel]” (aqui já passamos para a miniantologia ao lado), ela revela: “entre um café e um copo d’água sinto você mais uma vez/ crescendo em mim/ preparando-se para vir ao mundo onde me inquieto”.

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“Sensações” é outro poema dessa primeira parte. Nele, a mãe mistura suas apreensões em relação ao filho aguardado com os incômodos de seu chamado “estado interessante”. Daí a aparente incongruência: “o que vai nascer me provoca / ternura e náusea”.

(Um parêntese rápido: nos boletins, quando o poema não tem título, uso o primeiro verso, ou parte dele, entre colchetes. Isso facilita as referências ao texto nos comentários. Entre os poemas de Ieda Abreu incluídos na seleta ao lado, somente o segundo, “Sensações”, tem título.)

O próximo texto, “[Ele Quer Voar]” faz parte do bloco “Crescer”. Agora a mãe está entretida com as peripécias de seu rebento, que ensaia os primeiros passos e também — por que não? — frustradas tentativas de voo.

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Os dois últimos poemas, são extraídos da última parte de Grãos, “Memória”. Nesse espaço a poeta aproxima as observações da infância do filho à sua própria experiência quando tinha idade similar. Em “[Nunca Entendi]”, ela recorda os ensinamentos dos catecismos católicos, que em sua época apresentavam aos infantes conceitos difíceis de apreender. “Nunca entendi o deus dos catecismos”, lamenta a poeta, rememorando seus oito anos de idade.

O último poema começa com uma pergunta inusitada: “dizem que eu enchia de barquinhos de papel o teto dos armários/ era eu ou a prima louca?” A dúvida sobre a autoria das traquinagens perpassa todo o texto, mas afinal a menina sapeca entrega o ouro, com outra indagação: “que prima era essa, que eu que era?”

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Formada em jornalismo e em direito, Ieda E. de Abreu (Fortaleza-CE, 1943) é poeta, biógrafa, cronista e editora. Especificamente na área da poesia, publicou, entre outros títulos, Mais um Livro de Poemas (1970), Grãos - Poemas de Lembrar a Infância (1985, 1ª ed.; 2023, 2ª); A Véspera do Grito (2001); O Jogo do ABC (para crianças, 2003).


Um abraço, e até a próxima,

Carlos Machado


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Para lembrar a infância


• Ieda E. de Abreu


              



Emanuil Popgenchev - Orfeu e Eurídice
Emanuil Popgenchev, pintor búlgaro, Orfeu e Eurídice


[NO PAPEL]

no papel que envolve as primeiras fraldas escrevo o poema
olhando as chuvas de março.
entre um café e um copo d’água sinto você mais uma vez
crescendo em mim
preparando-se para vir ao mundo onde me inquieto.
no bar, pratos frios e sem vitaminas sustentam homens 
      [ crescidos suados
ao fim de mais um dia de trabalho. nesse mundo você 
      [ nascerá e viverá se for forte
seu primeiro choro não romperá silêncios porque nada 
      [ estará quieto quando vier.
você será mais um entre os que já estão aqui
o envolverei nos braços e cantarei cantigas antigas 
      [ ou inventadas
enquanto a cidade ruge seu coro ensurdecedor para 
      [ mostrar que existe.



SENSAÇÕES

o que vai nascer me provoca
ternura e náusea

o que vai nascer soca
minhas entranhas e aumenta
a expectativa.

o que sei dele, do esperado
é meu corpo se abrindo para lhe dar lugar
pesando com seu corpo dentro.

o que vai nascer vive
em leito de água e silêncio
nada sabe do que se fala e trama cá fora.

o que vai nascer não sabe
forma-se a cada dia para o dia de ser entre nós.



Emanuil Popgenchev - Diálogo
Emanuil Popgenchev, Diálogo


[ELE QUER VOAR]

ele quer voar e não sabe
não sabe que com os pés só ganhará o chão.
antes do chão quer o espaço
e ensaia o voo
antes do chão, uma mão ampara o menino pássaro
livre, livre de tanto não saber.



[NUNCA ENTENDI]

nunca entendi o deus dos catecismos.
por que ele onipresente, onipotente e onisciente
e me aguardava no seu trono celeste
para o juízo final?
o que era o juízo final
para os meus desarrazoados oito anos?



Emanuil Popgenchev - Menina com gato
Emanuil Popgenchev, pintor búlgaro, Menina com gato


[DIZEM QUE EU ENCHIA]

dizem que eu enchia de barquinhos de papel o teto dos armários
era eu ou a prima louca?
dizem que eu jogava relógios no fundo do poço
e ia me esconder no fundo da rede.
era eu ou a prima louca?
quem se vestia de papel crepom para ser pastora ou rainha
brincava de roda em noites de lua cheia
riscava a calçada de giz em noites de lua cheia?
era eu ou a prima louca?
que prima era essa, que eu que era?
quem éramos nos anos de quintal e sonho?
a prima louca?
a prima mansa?



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Carlos Machado, 2023



Ieda E. de Abreu
      in Grãos – Poemas de lembrar a infância
      Editora Urutau, 2a. ed., Cotia, 2023
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* Dante Milano, “Poemas de um verso”, in Obra Reunida
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* Imagens: quadros de Emanuil Popgenchev (1942-2010), pintor cubista búlgaro