Número 511 - Ano 21

Salvador, quarta-feira, 21 de junho de 2023

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«O relógio de parede numa velha fotografia — está parado?» (Mario Quintana) *

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Tarso de Melo
Tarso de Melo



Amigas e amigos,

O poesia.​net, em sua versão enviada por e-mail, enfrenta no momento um sério problema técnico. Como vocês devem imaginar, uso alguns recursos para enviar, de uma só vez, mais de 3 mil e-mails. Nenhum sistema normal de e-mail permite isso. Sou usuário de um serviço da Amazon e tenho em meu computador um aplicativo específico para conectar esse serviço.

Acontece que a Amazon agora introduziu mudanças técnicas no serviço e o aplicativo de conexão precisa ser atualizado. Infelizmente, o fornecedor do produto não dá mais sinal de vida e eu, até o momento, não encontrei um substituto. Assim, é possível que a partir de julho o boletim deixe de ser enviado por e-mail. De todo modo, estará disponível no site Alguma Poesia, com links nas redes Facebook e Instagram.

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O poeta em foco nesta edição é um “veterano” aqui no poesia.​net. De fato, Tarso de Melo (Santo André-SP, 1976) já esteve aqui em duas outras edições individuais: n. 31, vinte anos atrás, e n. 390, em 2017. Agora, ele retorna, trazido pelo lançamento da coletânea As Formas Selvagens da Alegria, lançada em 2022 pela Alpharrabio Livraria e Editora.

Na edição n. 390, o boletim baseou-se nos livros Poemas (a reunião da poesia de Tarso até 2014) e Íntimo Desabrigo, de 2017. Na época, escrevi: “um traço que se mantém na poesia de Tarso de Melo é a ligação visceral com a realidade”. Essa afirmação era válida para a obra do autor até então e continua válida em As Formas Selvagens da Alegria.

Mesmo assim, nesse livro mais recente observa-se uma sutil — porém substancial — mudança. A realidade permanece firme, como chão de referência. Mas a observação dos fatos é mais aguda, mais refinada e às vezes tangencia a reflexão existencial.

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Veja-se, por exemplo, o poema “Amanhã”, o primeiro da seleção apresentada ao lado. Há no texto uma profunda ironia sobre a vida planejada, as expectativas quase matemáticas traçadas para o futuro: “já estava decidido/ que os dias seriam assim/ que as noites seriam a salvo/ que a aposentadoria viria/ leve, branca, calma”.

No texto seguinte, “Ao Telefone”, o sujeito lírico se espanta ao encontrar em seu telefone celular dois “contatos” que são amigos mortos. Passeia pela lista e encontra outros nomes e números “de pessoas para quem não vou mais ligar”. Esse pequeno acontecimento leva ao pensamento de que um dia todos, inclusive ele, serão “uma longa lista de contatos/ em que ninguém se deixa contatar”.

No poema “Apus Apus” (que, a rigor deveria ser grafado aqui como Apus apus, já que se trata do nome científico de um animal), o autor consegue elevar aos patamares da poesia informações sobre o comportamento de uma ave, o andorinhão-preto. Um poema curioso e instigante.

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As Formas Selvagens da Alegria, eu disse mais acima, é um livro que cultiva sutilezas. Outro exemplo perfeito disso é o poema “Junto”. Aqui, o poeta elege como o possível “casal mais bonito/ da cidade/ ou do planeta” uma dupla invisível. Aliás, um suposto casal, sugerido pelo fato de que uma moça sozinha, provável trabalhadora na hora do almoço, se comunica com alguém, talvez por uma rede social.

O último texto da seleção tem data e história. Na segunda-feira, 19 agosto de 2019, o dia virou noite em São Paulo ainda no início da tarde. Uma frente fria, combinada com a fumaça de queimadas na região amazônica, provocou o sufocante fenômeno. Daí veio o poema “A Queda do Céu”, que traz a data “19/08/2019”.

A conclusão é perfeita: “O Brasil que matamos cai sobre o Brasil que se acha vivo, esperto, moderno. A floresta vem visitar, vem avisar. Vai cair o céu”. Felizmente, o governo federal que estimulava a destruição da floresta e “a passagem da boiada” não está mais aí. Precisamos cuidar para que não volte nunca mais. E os dias não virem noites.

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Tarso de Melo, advogado e professor universitário, é poeta, ensaísta e editor. Seus livros de poesia mais recentes são As Formas Selvagens da Alegria (Alpharrabio, 2022); Íntimo Desabrigo (Alpharrabio, 2017); e a antologia Rastros (Martelo, 2019).


Um abraço, e até a próxima,

Carlos Machado


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A queda do céu


• Tarso de Melo


              



Wallace Pato - Samba no trem-2020
Wallace Pato, pintor carioca, Samba no trem (2020)


AMANHÃ

falávamos de gente
que aos cinco, aos dez
já sabia o que queria
e o que não queria
para a vida toda
de uma vez por todas

não apenas a cor predileta
a estação mais linda do ano
mas cada ínfima resposta
para as perguntas que ainda
não lhe foram feitas

já estava decidido
que os dias seriam assim
que as noites seriam a salvo
que a aposentadoria viria
leve, branca, calma

mais o mar que a montanha
as manhãs que as madrugadas
uma dose de sol, da lua
uma distância segura
a medida dos passos
em que fibra do tempo
em que ponto do espaço

o deus para sempre louvado
o mal? como ser evitado
o que fazer do amor
o que fazer do sexo
o que nunca fazer

falávamos de gente
que aos vinte, aos trinta
já havia preenchido
de planos infalíveis
a agenda das próximas
décadas

enquanto o vento batia
em nossos corpos velhos
em nossos copos velhos
sem dizer uma palavra
sobre o amanhã



Wallace Pato - Que Deus me defenda-2021
Wallace Pato, Que Deus me defenda (2021)


AO TELEFONE

      para o Matheus

(1)

digito uma letra no telefone e surgem
entre os contatos dois amigos mortos

passeio pela lista e vejo outros nomes
de pessoas para quem não vou mais ligar

se insisto, não me atendem mais
se desisto, dizem algo que não ouço

deixo os números ali, os nomes, suas fotos
deixo nosso silêncio, no entanto, vivo

deixo-os como uma janela antiga
deixo ali o contato impossível


(2)

salto sobre os nomes dos amigos
que poderiam me atender

salto e temo pelo dia em que seremos
todos impossíveis, intocáveis

uma longa lista de contatos
em que ninguém se deixa contatar

como se um vírus alterasse
todos os números que não sei de cor

como se apenas o vírus soubesse
o que ainda nos falta tocar



Wallace Pato - Quando eu morer me enterre na Lapinha
Wallace Pato, Quando eu morrer me enterre na Lapinha (2021)


APUS APUS

      para Maria Esther Maciel

O andorinhão-preto
é capaz de voar durante dez meses.
Sem pouso, sem folga.

Os cientistas sabem que sim,
mas não sabem como, não sabem por quê.

Ainda não foi possível saber precisamente
como ele se alimenta ou mesmo
a razão para que migre durante tanto tempo,
mas já se sabe que o andorinhão-preto
troca todas as suas penas durante o voo longuíssimo,
em que chega a atingir 170 km/h.

O andorinhão-preto gira pela Europa,
mas passa os verões na África.

Em geral, seu corpo escuro mede 15 cm
e suas asas em forma de foice têm 50 cm de envergadura.

Os cientistas sabem que o andorinhão-preto dorme e copula no ar.
Para dormir, o andorinhão-preto sobe a 2000 metros
e bate as asas mais lentamente, 7 vezes por segundo.

Acredita-se que o andorinhão-preto consegue
prever más condições climáticas na sua rota
e, para evitá-las, desvia muitos quilômetros
e volta à rota assim que se sente mais seguro.

“Apus” quer dizer “sem pé”.

O andorinhão-preto não gosta do chão:
só pousa para colocar seus ovos e proteger os filhotes,
até que também possam voar.

O homem? Não.



Wallace Pato - Hilária Batista de Almeida-2021
Wallace Pato, Hilária Batista de Almeida (2021)


JUNTO

Junto
o casal mais bonito
da cidade
ou do planeta
talvez seja esse
que se forma
tímido
entre aquela moça
sozinha
pf sobre a mesa
e alguém invisível
noutro canto
do país
ou do mundo
que o trabalho separa
e a rede
envolve em laços
de dados


A QUEDA DO CÉU

O ceu está escuro às três da tarde. Não é preto, não é cinza. É uma mescla estranha de cores. É escuro. Há uma floresta queimada sobre São Paulo. Vai cair sobre a cidade a cinza de milhares de árvores. Assim se dá o encontro entre o Brasil que se julga civilizado e o Brasil que queimamos para civilizar. O Brasil que matamos cai sobre o Brasil que se acha vivo, esperto, moderno. A floresta vem visitar, vem avisar. Vai cair o céu.

19.08.2019






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Carlos Machado, 2023


Foto: Laura Mendes


Tarso de Melo
      in As Formas Selvagens da Alegria
      Alpharrabio, Santo André-SP, 2022
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* Mario Quintana, “O Rélógio”, in Caderno H (1973)
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* Imagens: quadros de Wallace Pato, pintor contemporâneo carioca