Número 512 - Ano 21

Salvador, quarta-feira, 5 de julho de 2023

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«Zero igual a zero: a única evidência. As outras sempre se prestam a discussões.» (Mario Quintana) *

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Paulo Henriques Britto
Paulo Henriques Britto



Amigas e amigos,

A ameaça de pararmos a distribuição do boletim por e-mail continua de pé. Passei as duas últimas semanas procurando uma alternativa técnica e não encontrei nenhuma adequada. O prazo de adaptação se esgotou em 28 de junho. Se você receber este boletim por e-mail, isso significa que o bloqueio ainda não foi posto em prática. Mas pode entrar em ação a qualquer momento.

De todo modo, os boletins continuarão sendo produzidos e colocados à disposição no site Alguma Poesia e nas páginas do poesia.​net no Faceboook e no Instagram.

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Professor, poeta, tradutor e ensaísta, Paulo Henriques Britto (Rio de Janeiro-RJ, 1951) é conhecido dos leitores deste boletim. Como poeta, ele já esteve aqui nas edições n. 412, de 2018; n. 45, de 2003; e ainda na edição coletiva n. 416, de 2019. Como tradutor, ele aparece nos boletins n. 39 e n. 55, centrados em Elizabeth Bishop; n. 55, dedicado à poesia de Wallace Stevens; e ainda na edição n. 200, com poemas de Lawrence Ferlinghetti.

Desta vez Paulo Henriques Britto vem até esta página trazido pelo lançamento de sua coletânea de poemas mais recente, Fim de Verão (Cia. das Letras, 2022). Neste livro, o autor dá continuidade ao desenvolvimento de sua dicção eminentemente pessoal. Uma poesia reflexiva e séria, mas que não abre mão da ironia e da profunda observação das coisas, sem pôr panos quentes em nossos defeitos nem pintar de cor-de-rosa as paisagens cinzentas.

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Passemos aos poemas selecionados para esta edição. Em “Anacruse”, um soneto entre aspas, o dono da voz é um crítico (ou são críticos) que descarrega(m) um caminhão de má vontade em cima do trabalho de certo poeta, supostamente o próprio Paulo Henriques Britto: “uma poesia/ bem calculista, sarcástica, fria,/ pobre em imagens, pouco musical”. A conclusão não é menos pesada: “em suma, uma poesia rala e pobre,/ que espelha a mesquinhez do nosso tempo”.

Não temos aí um poema qualquer. Trata-se do texto que abre o livro. Portanto, o poeta deve saber bem quem a quem pertence a voz de quem fala entre aspas. Vocês já devem estar se perguntando o que significa “anacruse”. Trazida da música e das técnicas de versificação, essa palavra de origem grega se refere a notas musicais ou sílabas métricas que antecedem o tempo forte no início da composição. É, portanto, uma “elevação de tom” na abertura do livro. De certo modo, antes que desçam o malho no que vem a seguir, o próprio autor já registrou as críticas.

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O segundo texto da minisseleta ao lado é a parte “IX” da série “Ao Leitor”, que vem logo depois de “Anacruse”. Mais um metapoema. Aqui, o poeta defende a ideia de que se existisse uma canção cantável em todas as horas, uma canção perfeita, que se encaixasse como luva em cada instante da vida, seria “A apoteose da pura retórica./ Uma canção totalmente vazia”. De fato, somente o que não diz nada se ajusta a qualquer contexto.

O poema seguinte, a parte “X” da série “Ao Leitor”, insiste no desmascaramento das coisas vazias. No caso, alguém aparece “fingindo que entende/ sem entender um centésimo”. E não só finge, como segue em frente, irresponsavelmente. O final deságua em pura lógica: “Não é nada,/ não é nada — não é nada, mesmo”.

Em “Bucólica”, o poeta desloca a discussão sobre poesia para a área rural. Aí ele apresenta sua profissão de fé: prefere as vacas magras, “que dão o leite ralo/ com que me regalo”. Mais uma vez, o elogio do discurso enxuto, “escasso”.

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Vem a seguir o poema “IV”, da série “Água de Rosas”, que contém reflexões existenciais. Nestes quatro quartetos, a discussão poderia se resumir na pergunta: entender o que causa a dor resolve o problema?

Chegamos ao último texto, a parte “III” de outro poema seriado, “Fim de Verão”, que dá título ao livro. O contexto é melancólico. Aparentemente, um grupo passou o dia inteiro (ou a tarde inteira) a discutir e não chegou a nenhuma decisão. “Ninguém moveu um músculo/ nem disse nada de substância. Em suma,/ ainda estamos no lugar exato/ do qual partimos — digo, de que não/ partimos”. A noite vem, e com ela tristeza da frustração.

A poesia de Paulo Henriques Britto não faz média, não adoça o que vem temperado com fel. Em certo sentido, parece uma poesia fora de lugar neste país de vastos fingimentos (“homem cordial”, “democracia racial”) onde o faz de conta sempre soa mais harmonioso do que a verdade. Não é estranha, portanto, aquela voz entre aspas, em tom demolidor, que se manifesta no início do livro.

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Paulo Henriques Britto estreou em 1982 com o livro Liturgia da Matéria e, até hoje, publicou mais sete títulos de poesia: Fim de Verão (2022); Nenhum Mistério (2018); Formas do Nada (2012); Tarde (2007); Macau (2003); Trovar Claro (1997); e Mínima Lírica (1989).

Tradutor de verso e prosa, Paulo Henriques Britto verteu para o português numerosos livros, entre os quais obras de William Faulkner, Elizabeth Bishop e Charles Dickens. Britto é também professor da PUC-Rio, nas áreas de tradução, criação literária e literatura brasileira.


Um abraço, e até a próxima,

Carlos Machado


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Fim de verão

• Paulo Henriques Britto


              



Evgeniy Monahov - 2006-02
Evgeniy Monahov, pintor russo contemporâneo, Lição de música


ANACRUSE

“Em sua mais recente coletânea
ele retoma os mesmos velhos temas,
e vê-lo equacionar esses problemas
gera uma admiração que é momentânea

e é só no plano intelectual —
pois o que temos é uma poesia
bem calculista, sarcástica, fria,
pobre em imagens, pouco musical,

presa ao prosaico; uma poesia chã,
indiferente ao que é sublime e nobre,
imune ao visceral, ao sentimento,

isenta de passado e de amanhã —
em suma, uma poesia rala e pobre,
que espelha a mesquinhez do nosso tempo.”


AO LEITOR - IX

Houvesse uma canção de se cantar
a qualquer hora, um canto de louvor
a tudo e todos, em ar, terra ou mar,
na dor mais crua e no mais cru amor,

e que dissesse sempre a coisa exata
em cada ocasião — nem mais, nem menos,
a conta certa — espécie de cantata
a proclamar aqui e agora, a plenos

pulmões, o aqui e o agora, a cada instante
e em toda parte, uma canção eufórica
que a todo ser humano elevaria.

Seria uma celebração constante.
A apoteose da pura retórica.
Uma canção totalmente vazia.



Evgeniy Monahov - 2006-02
Evgeniy Monahov, A última canção de Ofélia


AO LEITOR - X

É a velha história de sempre,
com este ou aquele acréscimo:
você fingindo que entende,
sem entender um centésimo.

E no entanto segue em frente,
irresponsável, intrépido,
se entregando simplesmente
ao mero acaso e seu séquito

de implicações impensadas,
catando coisas bonitas,
chegando a uma espécie de termo.

Aí confere as pepitas
amealhadas. Não é nada,
não é nada — não é nada, mesmo.


BUCÓLICA

Ordenhar as vacas
menores, mais fracas,
mais magras do pasto,

que dão o leite ralo
com que me regalo.
Das gordas, me afasto:

a coisa que abunda
é nauseabunda,
rançosa, nefasta.

O escasso, no entanto,
cabe no meu canto
e basta.



Evgeniy Monahov - 2006-02
Evgeniy Monahov, Medeia (2021)


ÁGUA DE ROSAS - IV

É como se fosse possível
deixar de sentir o sentido
se tão só se conhecesse
seu verdadeiro sentido,

como se a compreensão
daquilo que causa a dor
absolvesse por completo
o agente causador,

e a simples circunstância
de se ter consciência
conferisse o poder
de agir com ciência

plena do problema,
e resolvê-lo: ah, sim,
seria muito bom. (Pena
que não é assim.)


FIM DE VERÃO - III

É a hora inevitável do crepúsculo,
e não se decidiu coisa nenhuma
sobre nada. Ninguém moveu um músculo
nem disse nada de substância. Em suma,
ainda estamos no lugar exato
do qual partimos — digo, de que não
partimos. Há que aceitar este fato
desagradável. Mas não há razão
pra entrar em desespero, pois daqui a
doze horas, mais ou menos — se tudo
correr bem — há de vir um novo dia,
com seu devido e farto conteúdo:
mais de quarenta mil segundos. Tanto
assim! E agora é noite. Por enquanto.



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Carlos Machado, 2023


Foto: Renato Parada


• Paulo Henriques Britto
   in Fim de verão
   Companhia das Letras, São Paulo, 2022
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* Mario Quintana, in Caderno H (1973)
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* Imagens: obras do pintor russo Evgeniy Monahov (1974-)