Número 513 - Ano 21

Salvador, quarta-feira, 2 de agosto de 2023

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«A sombra do berço traça na parede / uma gaiola enorme.» (Elizabeth Bishop) *

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Mariana Godoy
Mariana Godoy



Amigas e amigos,

Começo com uma notícia boa: o boletim continuará a ser distribuído por e-mail. Em dado momento, confesso, acreditei que não haveria saída. Felizmente, após uma série de peripécias — das quais, ainda bem, vou poupá-l(as, os) —, apareceu uma solução. Então, foi um período preocupante, mas passou.

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Nesta edição o poesia.​net destaca a jovem poeta Mariana Godoy (Pacaembu-SP, 1996). Além de seu livro de estreia, O Afogamento de Virginia Woolf (Patuá, 2019), Mariana lançou Holograma (Círculo de Poemas, 2023). Formada em artes cênicas, a autora, assim como outros poetas de sua geração, parece conceber a poesia a partir das artes visuais. Numa entrevista ao jornal online PublishNews, ela afirma: “Eu penso a escrita dentro de uma sala de edição muito bem equipada, onde consigo cortar, inserir, desfazer a sequência de imagens”.

Desse modo, seus poemas quase sempre vêm marcados pela visualidade e pela construção de personagens, cenários e falas plantados no cotidiano. Outros traços que se destacam nos textos da autora são, de um lado, a ausência dos recursos tradicionais da poesia — tais como metáforas, paralelismos e assonâncias — e, de outro lado, o predomínio do coloquialismo.

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Para esta edição, organizei uma pequena seleta de poemas, extraída dos dois livros de Mariana Godoy, Holograma e O Afogamento de Virginia Woolf.

O primeiro poema ao lado, “Eco”, informa, de maneira bastante doída, sobre a morte do pai da pessoa que fala. A autora revela que o livro Holograma foi escrito para “elaborar um processo de luto”, que certamente se refere a uma perda pessoal. Para ela, o holograma é a representação virtual do ente querido que se foi.

Em “Malévola”, o tom é mais crítico. Refere-se às pequenas rusgas entre crianças e adultos dentro de casa. A “malvada” do título é uma avó italiana, personagem comum em famílias paulistas. O poema “Contra a Interpretação” também é focado no ambiente doméstico. Nele a autora discute a origem do nome de sua cidade natal e deixa a cargo de um avô (pessoal ou inventado) a conclusão bem-humorada do texto.

Ainda no âmbito familiar, a figura da mãe é quem se destaca no poema “A Guardadora de Rebanhos”, um título que remete a Fernando Pessoa. Mas os rebanhos, aqui, são formados pela coberta que mãe e filha, juntas, se encarregam de dobrar, no quarto, em interessante coreografia doméstica: “ela em uma ponta da cama/ eu na outra ponta segurando a mesma coberta/ as duas virando o corpo pelo quarto/ como numa dança”.

Até aqui, todos os poemas citados estão na coletânea Holograma. Os dois próximos pertencem ao livro de estreia da autora, O Afogamento de Virginia Woolf. O primeiro é “[Vovô pensa que o papai vai]”. Atenção: quem já conhece o poesia.net sabe que, nesta página, sempre que o poema não tem título, refiro-me a ele usando o primeiro verso entre colchetes.

O vovô, já senil, “pensa que o papai vai/ trazer frango assado pro jantar”. Só que “papai morreu há anos”. Neste caso, um parente morto aparece como um holograma no cotidiano doméstico, desta vez trazido pela decrepitude do avô.

Vem, por fim, o texto “[Deveríamos Ter a Mesma Idade]”. Mãe e filha se deslocam num ônibus urbano. A mãe desce do veículo, a filha fica, e o motorista dá a partida. Na técnica de narração, a poeta Mariana mostra sua vinculação à arte dramática. A mãe se desespera, grita, pede que o motorista pare. Mas, no fim, a mãe não é mais a mãe. É a filha, que até hoje corre atrás do ônibus.

Um abraço, e até a próxima,

Carlos Machado


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Poesia em hologramas

• Mariana Godoy


              



Hasan Saygin - o livro aberto-2021
Hasan Saygin, pintor turco, O livro aberto (2021), detalhe


ECO

meu pai me chama na cozinha
deve estar querendo alguma coisa
que só eu sei onde está
o açúcar
o filtro de café
a droga da tampa do liquidificador
grito já vou
e lembro que o enterro dele
foi ontem

MALÉVOLA

anota no seu caderninho
não é vó
é nonna
agora escreve vinte vezes
e lasciatemi cucinare

a língua materna é muitas vezes a língua madrasta


Hasan Saygin - borda da fonte-2022
Hasan Saygin, Borda da fonte (2022)


CONTRA A INTERPRETAÇÃO

quem nasce em pacaembu
é chamado de pacaembuense
eu sou uma pacaembuense de 1996

paã-nga-he-nb-bu
é uma palavra do tupi-guarani que significa
terras alagadas
mas dizem também que a palavra pode significar
córrego das pacas
e que pacaembu se chama pacaembu
porque tem a forma de uma tigela de água
ou é
por causa da presença excessiva das pacas
nos arredores da cidade

não sei se essas informações estão corretas
mas de qualquer forma
prefiro a explicação do meu avô
que a cidade se chama como se chama
porque um dia um morador gritou
paca
e outro gritou
embu

A GUARDADORA DE REBANHOS

tínhamos uma coreografia toda manhã
ela em uma ponta da cama
eu na outra ponta segurando a mesma coberta
as duas virando o corpo pelo quarto
como numa dança
como naquelas danças da corte francesa
a coberta ficando cada vez mais fechada
até ganhar a forma de um cilindro
enquanto nós duas
mãe e filha
terminávamos unidas pelas dobras do tecido
uma coreografia
que acabava com ela guardando a coberta
como quem guarda em segredo
um coração no armário


Hasan Saygin - moça com pérola vermelha-2021
Hasan Saygin, Moça com pérola vermelha (2021)


[VOVÔ PENSA QUE O PAPAI VAI]

vovô pensa que o papai vai
trazer frango assado pro jantar
fica repetindo o tempo todo
“as coxas são minhas”
digo pela milésima vez
que papai morreu há anos
mas vovô não dá a mínima
desconfia porque sou estranha
em meu vegetarianismo.

[DEVERÍAMOS TER A MESMA IDADE]

deveríamos ter a mesma idade,
seis, sete.
a mãe desceu do ônibus mas ele deu partida
com a filha dentro.
os passageiros começaram a gritar:
“pelo amor de deus, motorista,
para esse ônibus!”
a garotinha chorava de medo.
eu chorava de medo.
e a gente se parecia tanto
que agora vejo que ela sou eu.
a mãe desesperada correndo atrás do ônibus
sou eu.
corro, bato,
quebro os dedos 
querendo-me de volta,
o ônibus não para.
o ônibus nunca para.




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Carlos Machado, 2023



Mariana Godoy
•  “Eco”, “Malévola”, “Contra a interpretação” e “A guardadora de rebanhos”
    in Holograma
    Círculo de Poemas, São Paulo, 2023
•  “[Vovô pensa que o Papai vai]” e “[Deveríamos ter a mesma idade]”
    in O Afogamento de Virginia Woolf
    Patuá, São Paulo, 2019
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* Elizabeth Bishop, "Canções para uma cantora de cor",
 in Poemas Escolhidos de Elizabeth Bishop,
 trad. Paulo Henriques Britto
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* Imagens: quadros do pintor turco Hasan Saygin (1958-)