Número 514 - Ano 21

Salvador, quarta-feira, 16 de agosto de 2023

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«As palavras fazem seus ninhos / e põem seus ovos de fogo / nas feridas abertas do coração.» (Francisco Carvalho) *

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Mário Cesariny
Mário Cesariny



Amigas e amigos,

Poeta e pintor, o lisboeta Mário Cesariny de Vasconcelos (1923-2006) é considerado a principal figura do surrealismo português. Influenciado pelo poeta francês André Breton, teórico do surrealismo, a quem conheceu em Paris em 1947, Cesariny criou em Lisboa mais de um grupo surrealista.

Divulgador desse movimento, colaborou ativamente em jornais e revistas, promovendo suas ideias plásticas e literárias. Numa entrevista, afirmou: “Poesia que, aliás, é sinônimo de Surrealismo. Não vamos dizer surrealismo. Vamos dizer poesia. Porque surrealismo é o que existe de mais parecido com a poesia”.

Cesariny era convicto de sua adesão ao surrealismo. No livro Verso de Autografia / Mário Cesariny (2004), de Miguel Gonçalves Mendes, o poeta declara: “Eu acho que se se é surrealista, não é porque se pinta uma ave, ou um porco de pernas para o ar. É-se surrealista porque se é surrealista!”

Mas a ditadura salazarista não estava muito interessada em sua arte e vigiava de perto os passos de Cesariny, submetendo-o a perseguições e frequentes interrogatórios e tratando-o como suspeito de “vagabundagem”. O verdadeiro motivo: sua homossexualidade. O artista só se livrou desses atos de intolerância após a Revolução dos Cravos, em 1974, que pôs fim ao regime salazarista.

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Especificamente em poesia, Cesariny publicou uma obra extensa, na qual destacam-se os seguintes títulos: Corpo Visível (1950); Discurso Sobre a Reabilitação do Real Quotidiano (1952); Louvor e Simplificação de Álvaro de Campos (1953); Manual de Prestidigitação (1956); Pena Capital (1957); Alguns Mitos Maiores e Alguns Mitos Menores Propostos à Circulação Pelo Autor (1958); Antologia do Cadáver-Esquisito (1961); Antologia Surreal/Abjecion(ismo); (1963); A Intervenção Surrealista (1966); e Titânia e a Cidade Queimada (1977).

Falecido em 2006, Mário Cesariny não é muito conhecido no Brasil. Os poemas apresentados neste boletim foram extraídos do livro Poesia, uma reunião quase completa de sua obra poética, lançado em 2017 pela editora portuguesa Assírio & Alvim, com edição, prefácio e notas do crítico e especialista em surrealismo Perfecto E. Cuadrado. Não tenho elementos para afirmar, mas aparentemente não há obras de Cesariny publicadas no Brasil.

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Uma observação interessante: esta é a primeira vez no poesia.​net em que o poeta e o autor das imagens ilustrativas têm a mesma assinatura. O fato de Mário Cesariny ser poeta e pintor possibilitou essa curiosa exceção.

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Passemos à miniantologia desta edição do boletim. No primeiro poema ao lado, “História de Cão”, o poeta relata, em tercetos rimados, a memória que guarda de alguém numa “extensa praia” onde havia uma “grande casa amarela”. E o cão do título? “o cão atesta esta história/ sentado no meio da estrada/ mas de nós não há memória”.

Vem a seguir o poema “Voz numa Pedra”. O ambiente é tipicamente surrealista. O texto passa, com ironia, por personagens chamados Osíris e Ísis, homônimos do casal de deuses egípcios, de passagem cita Sócrates (“sei que não sei nada”) e segue com uma série de enigmas. “Os pregadores de morte vão acabar?/ Os segadores do amor vão acabar?” Outra indagação: por que essa voz vem de uma pedra?

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O próximo poema, “Pastelaria”, é menos misterioso. Sarcástico, afirma que o mais importante não é a literatura, nem o negócio, nem a fome etc. Importante, mesmo, é rir de tudo, com “muitos dentes brancos à mostra”. O nível de sarcasmo é o mesmo em “Rua da Bica Duarte Belo”. Nesse texto curto, o poeta se diverte, mostrando a triste combinação entre um anúncio imobiliário (“prédios quase de graça”) e a “gente engraçada” que passa: “um estudante sem livros” e “um operário desempregado”.

No poema “Todos por Um”, os toques de zombaria se voltam para os poetas românticos, coitados, ameaçados pelos perigos mortais de uma manhã especialmente triste.


Um abraço, e até a próxima,

Carlos Machado


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Dentes brancos à mostra


• Mário Cesariny


              

Mário Cesariny- o.papa.que.veio.de.leste-1980
Mário Cesariny, português, O Papá que veio de Leste (1980)


HISTÓRIA DE CÃO

eu tinha um velho tormento
eu tinha um sorriso triste
eu tinha um pressentimento

tu tinhas os olhos puros
os teus olhos rasos de água
como dois mundos futuros

entre parada e parada
havia um cão de permeio
no meio ficava a estrada

depois tudo se abarcou
fomos iguais um momento
esse momento parou

ainda existe a extensa praia
e a grande casa amarela
aonde a rua desmaia

estão ainda a noite e o ar
da mesma maneira aquela
com que te viam passar

e os carreiros sem fundo
azul e branca janela
onde pusemos o mundo

o cão atesta esta história
sentado no meio da estrada
mas de nós não há memória

dos lados não ficou nada

      De Manual de Prestidigitação (1956)



Mário Cesariny- naniora-uma.e.duas-1960
Mário Cesariny, Maniora - Uma e duas (1960)


VOZ NUMA PEDRA

Não adoro o passado
não sou três vezes mestre
não combinei nada com as furnas
não é para isso que eu cá ando
decerto vi Osíris porém chamava-se ele nessa altura Luiz
decerto fui com Ísis mas disse-lhe eu que me chamava João
nenhuma nenhuma palavra está completa
nem mesmo em alemão que as tem tão grandes
assim também eu nunca te direi o que sei
a não ser pelo arco em flecha negro e azul do vento

Não digo como o outro: sei que não sei nada
sei muito bem que soube sempre umas coisas
que isso pesa
que lanço os turbilhões e vejo o arco-íris
acreditando ser ele o agente supremo
do coração do mundo
vaso de liberdade expurgada do mênstruo
rosa viva diante dos nossos olhos
Ainda longe longe a cidade futura
onde «a poesia não mais ritmará a acção
porque caminhará adiante dela»
Os pregadores de morte vão acabar?
Os segadores do amor vão acabar?
A tortura dos olhos vai acabar?
Passa-me então aquele canivete
porque há imenso que começar a podar
passa não me olhes como se olha um bruxo detentor do milagre da verdade
«a machadada e o propósito de não sacrificar-se não construirão ao sol coisa nenhuma»
nada está escrito afinal

      De Pena Capital (1957)



Mário Cesariny- este.e.o.meu.testamento.de.poeta-1994
Mário Cesariny, Este é o meu testamento de poeta (1960)


PASTELARIA

Afinal o que importa não é a literatura
nem a crítica de arte nem a câmara escura

Afinal o que importa não é bem o negócio
nem o ter dinheiro ao lado de ter horas de ócio

Afinal o que importa não é ser novo e galante
— ele há tanta maneira de compor uma estante!

Afinal o que importa é não ter medo: fechar os olhos frente ao precipício
e cair verticalmente no vício

Não é verdade, rapaz? E amanhã há bola
antes de haver cinema madame blanche e parola

Que afinal o que importa não é haver gente com fome
porque assim como assim ainda há muita gente que come

Que afinal o que importa é não ter medo
de chamar o gerente e dizer muito alto ao pé de muita gente:
Gerente! Este leite está azedo!

Que afinal o que importa é pôr ao alto a gola do peludo
à saída da pastelaria, e lá fora — ah, lá fora! — rir de tudo

No riso admirável de quem sabe e gosta
ter lavados e muitos dentes brancos à mostra

      De Nobilíssima Visão (1959)



Mário Cesariny- sem.titulo-sdata
Mário Cesariny, Sem Título (sem data)


RUA DA BICA DUARTE BELO

ESTES PRÉDIOS SÃO QUASE DE GRAÇA
diz a tabuleta encarnada
à gente que passa

E é que às vezes passa uma gente engraçada:
um estudante sem livros e ao lado
um operário desempregado

      De Nobilíssima Visão (1959)



Mário Cesariny- as.grandes.viagens-sdata
Mário Cesariny, As grandes viagens (sem data)


TODOS POR UM

A manhã está tão triste
que os poetas românticos de Lisboa
morreram todos com certeza

Santos
Mártires
e Heróis

Que mau tempo estará a fazer no Porto?
Manhã triste, pela certa.
Oxalá que os poetas românticos do Porto
sejam compreensivos a pontos de deixarem
uma nesgazinha de cemitério florido
que é para os poetas românticos de Lisboa não terem de recorrer à vala comum

      De Nobilíssima Visão (1959)





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Carlos Machado, 2023



Mário Cesariny
      in Poesia
      edição, prefácio e notas: Perfecto E. Cuadrado
      Assírio & Alvim, Lisboa, 2017
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* Francisco Carvalho, "Palavras Mudam de Cor", in Memórias do Espantalho (2004)
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* Imagens: quadros do poeta e pintor português Mário Cesariny (1923-2006)