Carlos Drummond de Andrade
Caros,
Vejam ao lado uma interessante coincidência de ideias entre diferentes
manifestações artísticas. Um verso de Carlos Drummond de Andrade, publicado em
1945, repete-se na letra da canção "Street Fighting Man", dos Rolling Stones,
composta e gravada em 1968.
Carlos Machado
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Drummond e os
Rolling Stones
"Meu nome é tumulto".
De quem é este verso? Os mais antenados vão dizer: Drummond. E se eu
disser que é dos Rolling Stones?
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Carlos Machado
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Drummond e os Rolling Stones: versos similares
«Meu nome é tumulto, e escreve-se na pedra»
(Carlos Drummond de Andrade,
no poema "Nosso Tempo",
in A Rosa do Povo, 1945)
«Hey, my name is called
Disturbance»
(Mick Jagger e Keith Richards,
dos Rolling Stones, na canção
"Street Fighting Man", 1968)
Vejam só que coincidência: Drummond e os Rolling Stones escreveram
versos bastante similares. Vinte e três anos separam os lançamentos das
obras que contêm esses versos. O poema de Drummond está no livro A Rosa
do Povo, de 1945. A música de Jagger-Richards saiu pela primeira vez em
agosto de 1968, num compacto simples, e depois foi integrada como a primeira
faixa do lado B do álbum Beggars Banquet (Banquete dos Mendigos),
que chegou às lojas inglesas e americanas em dezembro do mesmo ano.
The Rolling Stones: Street Fighting Man, ao vivo em 1969
O verso drummondiano integra o poema “Nosso Tempo”, texto longo dividido
em oito partes, no qual o poeta traça um retrato do mundo conflagrado na
Segunda Guerra Mundial, enquanto os brasileiros também enfrentavam a
ditadura do Estado Novo. As duas primeiras linhas do texto são sintomáticas:
“Este é tempo de partido, / tempo de homens partidos”. Conforme a professora
Marlene de Castro Correia, estudiosa da obra de Drummond, esses dois versos
definem a ideia central do poema. O texto constata a fragmentação dos seres
humanos naquele momento histórico-cultural, mas não admite a abstenção:
“exige que se faça uma opção ideológica, que se assuma uma posição política,
que se tome partido, enfim”, escreve a professora.
Para ela, na
estrofe seguinte, o poeta identifica-se ideologicamente:
Em vão percorremos volumes,
viajamos e nos colorimos.
A hora pressentida esmigalha-se em pó na rua.
Os homens pedem carne. Fogo. Sapatos.
As leis não bastam. Os lírios não nascem
da lei.
Meu nome é tumulto,
e escreve-se
na pedra.
Com efeito, versos desse naipe só poderiam surgir num momento
histórico como aquele, tão exigente.
Composta sob o impacto do Maio
de 1968 na França e das manifestações contra a guerra do Vietnã nos Estados
Unidos, a canção “Street Fighting Man” (Lutador de Rua) também foi escrita
num momento de conflito social. É música de um tempo em que o rock’n’roll
ainda era rebelde.
A letra começa descrevendo o contexto das
manifestações "em toda parte" e afirma que é hora de lutar. Contudo, lamenta
que na “Londres sonolenta” não haja lugar para combates de rua.
STREET FIGHTING MAN LUTADOR DE RUA
Everywhere I hear the sound of marching, charging feet, boy, 'Cause
summer's here and the time is right for fighting in the street, boy
Em toda parte escuto o som de pés marchando, rapaz
Pois o verão chegou e é a hora certa de lutar nas ruas, rapaz
Well, then what can a poor boy do, except to sing for a rock & roll band?
Cause in sleepy London Town there's just no place for a street fighting man,
no
Então o que pode fazer um rapaz pobre, senão cantar numa banda de rock?
Porque nessa Londres sonolenta não há lugar para um lutador de rua, não
Hey! Think the time is right for a palace revolution,
Cause where I live the game to play is compromise solution
Ei, acho que é a hora certa para um golpe palaciano,
pois onde moro o jogo que se joga é solução de compromisso
Hey,
my name is called Disturbance;
I'll shout and scream, I'll kill the King, I'll rail at all his servants
Ei, meu nome é Tumulto;
Vou gritar e berrar, vou matar o Rei e ralhar com todos os seus servos
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É óbvio que toda essa bravata "revolucionária" e meio anarquista só poderia
ser gravada numa democracia como a Inglaterra. Seria impensável alguém no Brasil
cantando algo assim, em 1969, nos tenebrosos tempos do AI-5 e do general
Garrastazu Médici.
Um detalhe interessante: a expressão palace revolution (que traduzi aí em
cima como "golpe palaciano") significa um golpe de estado tramado por pessoas
que já ocupam posições de poder. Isso mostra que a letra não apresenta nenhuma
proposta "revolucionária" — é pura empolgação dos Stones, refletindo o clima
geral de rebeldia do ano que (aqui) não terminou. Na verdade, a letra lamenta
que o jogo possível na Inglaterra é "solução de compromisso", não há lugar para
uma revolução de fato.
Os ânimos de 68 estavam
mesmo exaltados. Se “Street Fighting Man” abria o lado B do elepê, a primeira
faixa do lado A também não era pouco escandalosa: “Sympathy for the
Devil” (Simpatia pelo Diabo), canção na qual o Demo fala em primeira pessoa.
Apresenta-se como Lúcifer, homem rico e de bom gosto, gaba-se de ter feito e
acontecido durante toda a História, e ainda exige ser tratado com simpatia. Mas
Mr. Lúcifer também sugere, em certo trecho da letra, que todas as atrocidades
que ele cometeu foram na verdade obras do ser humano: "eu e você". Os Rolling
Stones talvez não soubessem exatamente o que estavam fazendo, mas com certeza se
integraram muito bem ao espírito contestador da época.
Quanto aos dois
versos que geraram toda essa discussão (“Meu nome é tumulto” e “My name is
called Disturbance”), eles de fato são muito parecidos. Aliás, em inglês, um dos
sinônimos de disturbance é tumult, palavra que vem da mesma
raiz latina (tumultus) de nosso "tumulto".
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