Número 18

São Paulo, quarta-feira, 7 de maio de 2003 

"Quem pode ser verdadeiro/ sem que desagrade?" (Cecília Meireles)
 


Ruy Espinheira Filho


Caros amigos,

"Para onde vamos é sempre ontem", diz um verso do poeta baiano Ruy Espinheira Filho (1942-). Mesmo correndo o risco do reducionismo, é possível adotar esse verso (há outros: por exemplo, "O que respiro é ontem") como um dos grandes símbolos da poesia de Espinheira. Poeta da memória, ele constrói uma poesia profundamente marcada pela infância e pela adolescência.

Ler a poesia de Espinheira é fazer uma viagem doce e amarga pelas lembranças dele que, inevitavelmente, nos remetem às nossas lembranças. "Umas coisas valem a dor da memória", considera o poeta.

Ao lado, dois poemas de Espinheira extraídos de seu livro Poesia Reunida (Record, 1998): "Canção da Moça de Dezembro" e "Blind Borges". A "Canção" é um poema belíssimo, pungente e que, acredito, tem bem a marca do poeta. Um poeta que flagra em si mesmo a disposição para a convivência com um passado que não passa:


Será sempre assim: este luar
da memória. E este rumor
do coração.

Mas o poeta não se restringe à memória. O soneto "Blind Borges" representa, ao mesmo tempo, uma homenagem ao bruxo de Buenos Aires e uma profunda reflexão sobre o nosso destino final.


Um abraço,

Carlos Machado
 

P.S.1 : O texto acima já estava escrito. Mas é preciso agradecer, de coração, à gentileza do poeta Ruy Espinheira Filho, que autorizou, de bom grado, a publicação de seu poema neste boletim e ainda me enviou uma foto digital.

P.S.2 : Cheguei, sozinho, à conclusão de que Ruy Espinheira Filho poderia receber o epíteto de "poeta da memória". Mas não sou o primeiro. E o poeta, em entrevista a Rodrigo de Souza Leão, reage a isso com a seguinte frase: "Então me caberia perguntar: qual não é?"

                        ••o••


Veja também sobre Ruy Espinheira Filho o boletim:
- poesia.net 284

 

O poeta da memória

Ruy Espinheira Filho

 



CANÇÃO DA MOÇA DE DEZEMBRO


A moça dança comigo
nessa noite de dezembro.
Na sala onde giramos
se alguém mais há não me lembro.

O ondear da moça ondeia
uma melodia ainda
mais doce que a da vitrola
— e uma alegria vinda

dessa doçura me envolve.
Cabe bem no meu abraço
esse perfume com que
vou girando e em que me abraso

em meus quinze anos (a moça
terá, talvez, dezessete
ou dezoito). Como a valsa,
a vida o melhor promete.

E já oferta: esse corpo
a cada instante mais perto.
Ao qual responde meu corpo,
como nunca antes desperto.

E a moça vai-me queimando
em seu hálito, afogando-me
nos cabelos, e nos olhos
luminosos siderando-me!

E eis que, dançando, saímos
além da sala e do tempo.
E dançando prosseguimos
sempre que sopra dezembro,

nos mesmos giros suaves,
nos mesmos ledos enganos:
eu, o antigo rapaz,
e a moça, morta há treze anos.





BLIN
D BORGES

        La vasta y vaga y necesaria muerte.
               Jorge Luis Borges: Blind Pew

A vasta e vaga morte, esse outro sonho,
não é só outro sonho: é a mais remota
ilha de ouro a que nossa derrota
nos leva, inexorável, sonho a sonho.

Latidos pelos cães, sonho após sonho,
sonhamos. Esta é a vida, a vela, a rota
do homem: sonhar. E em áurea praia ignota
sonha o que sonha o sonhador, que é sonho.

Isto é o que pulsa em nós: o ansiado ouro
— distante e aqui, no coração —, tesouro
cuja procura tece a nossa sorte;

rumo que a alma singra e sagra em ouro
até chegar enfim a esse tesouro
incorruptível que nos sonha a morte.

 

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2003

•  Ruy Espinheira Filho
    In Poesia Reunida e Inéditos (1966-1998)
   
Editora Record, 2a. ed.
    Rio de Janeiro, 1998