Número 38

São Paulo, quarta-feira, 24 de setembro de 2003

«Se morrermos,/ todos,/ de uma só vez,/ Deus/ morreu também.» (Cassiano Ricardo)
 


Luís Vaz de Camões


Caros,

É impressionante como um poema consegue se manter belo, interessante, viçoso, mais de 400 anos depois de escrito. Somente os grandes poetas — talvez seja melhor dizer: os gigantes — conseguem esse prodígio.

O português Luís Vaz de Camões (1524?-1580) é um desses gigantes. Veja-se, por exemplo, o soneto cujo primeiro verso é "Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades". Com impecável pensamento dialético, o poeta mostra que tudo se transforma, sempre; e que, além disso, as formas de mudar também se modificam.

Sempre dialético, ele analisa as contradições do amor em "Amor é um fogo que arde sem se ver". Por fim, o poeta retoma a história bíblica da paixão de Jacó por Raquel no excelente "Sete anos de pastor". Se você descontar uma ou outra palavra mais antiga (soía, do verbo soer, ou seja, acontecer com freqüência, costumar; ou cautela, no sentido de fraude, ardil) e expressões como "se não a tivera merecida", são poemas modernos. Na verdade, há poemas de hoje com aparência menos atual que a desses vetustos sonetos de Camões. São versos que todo mundo conhece, mas vale a pena revisitá-los.


Um amigo meu, o escritor baiano Valdomiro Santana, não se cansa de repetir que os verdadeiros gigantes da poesia em língua portuguesa são três: Camões, Pessoa e Drummond. Ergo um altar pagão e curvo-me diante dessa santíssima trindade!

                    •••o•••

Este boletim já estava pronto há algum tempo. Resolvi soltá-lo agora para estabelecer um contraste. Na edição passada, apresentei o mineiro Ricardo Rizzo, 22 anos, como o poeta mais jovem já enfocado em poesia.net. Camões é, portanto, o poeta mais antigo...

                    •••o•••

Veja outros poemas de Camões no Jornal de Poesia.



Um abraço, e até a próxima.

Carlos Machado



 

Moderno, com 400 anos

Luís Vaz de Camões

 




Rafael - As Três Graças
Rafael, italiano, As Três Graças (1504-5)



MUDAM-SE OS TEMPOS...

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
muda-se o ser, muda-se a confiança;
todo o mundo é composto de mudança,
tomando sempre novas qualidades.

Continuamente vemos novidades,
diferentes em tudo da esperança;
do mal ficam as mágoas na lembrança,
e do bem (se algum houve), as saudades.

O tempo cobre o chão de verde manto,
que já coberto foi de neve fria,
e, enfim, converte em choro o doce canto.

E, afora este mudar-se cada dia,
outra mudança faz de mor espanto,
que não se muda já como soía. 

 

Rafael - Maddalena Doni - 1506
Rafael, Maddalena Doni (1506)



AMOR É UM FOGO...

Amor é um fogo que arde sem se ver,
é ferida que dói, e não se sente;
é um contentamento descontente,
é dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer;
é um andar solitário entre a gente;
é nunca contentar-se de contente;
é um cuidar que ganha em se perder.

É querer estar preso por vontade;
é servir a quem vence, o vencedor;
é ter com quem nos mata, lealdade.

Mas como causar pode seu favor
nos corações humanos amizade,
se tão contrário a si é o mesmo Amor?

 

Rafael - La fornarina
Rafael, A padeira (1518/9)



SETE ANOS DE PASTOR...

Sete anos de pastor Jacó servia
Labão, pai de Raquel, serrana bela;
mas não servia ao pai, servia a ela,
e a ela só por prêmio pretendia.

Os dias, na esperança de um só dia,
passava, contentando-se com vê-la;
porém o pai, usando de cautela,
em lugar de Raquel lhe dava Lia.

Vendo o triste pastor que com enganos
lhe fora assim negada a sua pastora,
como se a não tivera merecida;

começa de servir outros sete anos,
dizendo: — Mais servira, se não fora
para tão longo amor tão curta a vida.


 

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2003

•  Luís Vaz de Camões
    Sonetos
_______________

• Imagens: quadros de Rafael Sanzio (1483-1520), pintor italiano renascentista